sexta-feira, 25 de abril de 2014

Spoilers de Spec Ops: The Line!


Quando a única coisa que você faz num jogo é atirar, eu fico entediado muito rápido. O negócio tem que ser muito over the top (como Vanquish) para manter meu interesse. Em geral, eu prefiro quando o jogo mistura outros elementos fora o tiroteio, como stealth (vide Splinter Cell e Metal Gear) ou plataforma (Tomb Raider e Uncharted).

Se você gosta de Call of Duty e/ou Battlefield, não se ofenda, mas para mim os shooters militares são o cúmulo do enfado. Eu admito ter gostado muito do primeiro Modern Warfare, principalmente por causa da missão de stealth e da crítica embutida na missão do avião (olha a variedade aí). Mas fora isso, é tudo muito repetitivo, não só dentro de um mesmo jogo, como de um jogo para o outro.

Apesar de desiludido com o gênero, resolvi dar uma chance a Spec Ops: The Line. Afinal, embora não tenha sido tão bem avaliado na época de seu lançamento, seu reconhecimento foi crescendo depois: ele levou os prêmios de jogo do ano no Zero Punctuation, melhor narrativa no Machinima e melhor história de PC na IGN. Desde então virou cult, e é comum vê-lo em listas de melhores jogos da geração (ou pelo menos nas de jogos mais subvalorizados) em fóruns de games pela internet afora. Eu quis conferir por mim mesmo.

Fico feliz de ter arriscado, pois certamente foi uma das melhores histórias que vi nessa geração. Ou melhor, que experimentei. É uma daquelas poucas histórias que só é possível apreciar 100% no videogame, pois ela está muito bem mesclada com a jogabilidade. Assistir no YouTube não tem o mesmo impacto.

Se você pretende jogar esse jogo um dia, quanto menos você souber sobre ele, melhor. Mas depois que zerar, você vai ficar morrendo de vontade de discutir a história com os amigos, assim como eu fiquei! Por isso, preste atenção: a partir da próxima seção, este post está lotado de SPOILERS!

Eu recomendo que você pare de ler agora, vá zerar o jogo e volte depois. Trata-se de um jogo curto. Eu levei só seis horas para zerar, embora depois tenha gasto mais uma ou duas para obter algumas conquistas que eu achei que valiam à pena. E se você achar as duas primeiras horas meio genéricas, insista: você não vai se arrepender.



Cuidado: SPOILERS!


É sério, se você não zerou o jogo, não leia. Você pode estar perdendo uma das melhores histórias da sétima geração dos videogames. Se existe a mínima possibilidade de você jogar esse jogo um dia, deixe para continuar a ler esse post depois de zerar. Ou pelo menos depois não diga que eu não avisei...

Vamos começar com o básico: o jogo é inspirado no famoso romance de um século atrás chamado Heart of Darkness, do britânico Joseph Conrad. Caramba, o nome do cara que você procura no jogo é John Konrad! O nome tem a mesma inicial, e o sobrenome é o mesmo, só que começando com K, assim como Kurtz, que é o nome do cara procurado no romance...

Não vou entrar em detalhes porque não li o livro. Mas eu vi o filme Apocalypse Now, do Coppola, que também é baseado no livro. Se é verdade que o filme transportou muito bem a história do colonialismo europeu para o intervencionismo americano, o jogo transportou muito bem a história do Congo (ou do Vietnã, se você considerar a partir do filme) para o Oriente Médio, num futuro próximo em que Dubai está numa situação meio pós-apocalíptica por causa da tempestade de areia cataclísmica... Chega. Afinal, você já zerou o jogo, certo?

Heart of Darkness é talvez o livro mais analisado em escolas e universidades de língua inglesa, e muitos dos questionamentos que o texto original apresenta permanecem contundentes em Spec Ops: The Line. E o jogo, por ser um jogo, acrescenta seus próprios questionamentos. Nesse sentido, seu subtítulo é brilhante, referenciando a expressão em inglês cross the line. Afinal, qual é linha que separa:
  • o certo do errado?
  • o aceitável do inaceitável?
  • o civilizado do bárbaro?
  • o lúcido do louco?
  • o herói do vilão?
  • o inocente do culpado?
  • o soldado do assassino?
  • o jogador do que ele faz dentro do jogo?

Tantas outras questões são levantadas... Por exemplo, qual foi o começo da queda do Capitão Walker?
  • Foi ao desobedecer as ordens (bem sensatas, por sinal) no começo do jogo? Ele queria ser um herói... Por compaixão dos que estavam ilhados? Ou por vaidade?
  • Foi quando ele começou a matar soldados americanos? Mas eles atiraram primeiro...
  • Foi quando ele matou os civis com fósforo branco? Mas foi por engano...

Nada na história do jogo é preto no branco. O fato é que logo as intrigas políticas da CIA e as escaramuças contra o 33º batalhão vão perdendo o foco. Walker continua cada vez mais obcecado em encontrar Konrad... Mas atrocidades que ele testemunha e, principalmente, as que ele pratica vão roubando a cena e saltam para o primeiro plano, tornando-se o verdadeiro motor da história. O jogo "cruza a linha" das suas expectativas de jogador de shooters militares genéricos, e joga todos esses dilemas em cima de você.

Na cena projetada para cer a mais marcante do jogo, Walker matou civis sem querer. Mas matou. Se ele não estivesse lá, eles não teriam morrido. Um pouco antes de perceber que tinha atingido civis, um dos soldados, quase morrendo queimado pelo fósforo branco, pergunta: Why? Walker responde, You brought this on yourself. Será mesmo? Será que ele consegue se isentar da culpa? Será que ele não vai, como Adams diz em outro momento, carregar aquilo para o túmulo?


No tribunal de sua mente, Walker não consegue resolver essas questões, e começa a "surtar". Ainda assim, você, como jogador, não tem como passar da parte do fósforo branco sem matar os civis. Lógico que você podia ter parado de jogar... Mas eu ainda acho mais impressionante quando, perto do fim do jogo (assim que o Lugo morre), os civis vem pra cima de você... Você poderia atirar para o alto, fazendo com que eles fujam sem machucar ninguém.

Mas quem fez isso da primeira vez que jogou essa fase? Na hora você está com uma mistura de raiva por terem enforcado o Lugo e medo de te lincharem, e você nem pensa nisso: simplesmente abre fogo contra a multidão de civis, de forma desnecessária para o progresso do jogo! Não vejo como um jogo pode conseguir te causar uma sensação de remorso mais genuína do que esta.


Nesses últimos capítulos do jogo é interessante notar que as telas de loading deixam de apenas resumir a história ou dar dicas de gameplay, e começam a aparecer frases que parecem direcionadas ao Walker. Mas o resumo da história e as dicas de gameplay não eram para o Walker, eram para o jogador. Então essas frases também devem ser para o jogador, não é mesmo?

"You are still a good person."
Será? Depois de tudo que o Walker fez, e que você, jogador, fez no jogo?

"Do you feel like a hero yet?"
Foi a motivação de Walker, e é a sua como jogador, não é?

"Do you even remember why you came here?"
Walker ficou obcecado com o Konrad. E você, está obcecado em terminar o jogo?

"If you were a better person you wouldn't be here."
Será que nós, jogadores, estamos insensíveis à violência sem sentido? Estamos seguindo os prompts dos jogos sem nos questionar? Terminando os jogos a qualquer custo?

"This is all your fault."
Walker poderia ter voltado atrás. Você, jogador, poderia ter parado de jogar.

"How many Americans have you killed today?"
Faz diferença se eles são virtuais?

"The US military does not condone the killing of unarmed combatants. But this isn't real, so why should you care?"
Se você tinha dúvidas de que as frases são direcionadas ao jogador...

"There is no difference between what is right and what is necessary."
Essa era minha frase favorita, até eu topar com a próxima.

"To kill for yourself is murder. To kill for your government is heroic. To kill for entertainment is harmless."
A primeira sentença é séria. A segunda é obviamente sarcástica. E a terceira?

Finalmente temos o final "Clube da Luta", que poderia ser um péssimo cliché, mas que aqui cai como uma luva: a esquizofrenia (ou seja lá qual o termo psicologicamente correto para a loucura dele) é uma consequência totalmente plausível para os traumas que Walker enfrentou. O diálogo com Konrad também tem várias frases que podem se aplicar ao jogador.

"The truth is that you're here because you wanted to feel like something you're not: a hero."

"You're no savior. Your talents lie elsewhere."
(Walker lembra das atrocidades que cometeu.)

"None of this would've happened if you just stopped. But on you marched. And for what?"

Agora que você zerou o jogo (você zerou, não é?), sugiro que você carregue os últimos capítulos ímpares (7, 9, 11, 13 e 15) e veja como você poderia ter tomado decisões diferentes. Dependendo do que você decide no último capítulo há um epílogo jogável, e há três maneiras de terminá-lo! Se quiser, use as conquistas de história como guia.

Aproveite para reparar nos pequenos detalhes, como as variações na title screen do jogo ou os indícios da loucura de Walker (repare no outdoor na figura abaixo, por exemplo).


Eu espero que você tenha gostado do jogo tanto quanto eu. Principalmente da história. Não é uma história otimista ou conclusiva, mas quando foi a última vez que você genuinamente sentiu culpa e remorso num jogo? Ou a loucura se apresentou de maneira tão plausível? Ou o seu papel de jogador foi tão duramente questionado? Tudo isso num jogo de 6 horas, sem filler desnecessário?

Outro dia eu estava ouvido um podcast (99vidas 118) e um dos integrantes (Bruno Carvalho) disse que "o maior mérito de um game é te prender". Concordo 100%. Eu zerei Spec Ops: The Line em duas noites consecutivas, e foi difícil me obrigar a parar no meio por ter que trabalhar no dia seguinte. Acho que esse é o maior elogio que posso fazer ao jogo, então vou parar por aqui.

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